English French German Spain Italian Dutch Russian Portuguese Japanese Korean Arabic Chinese Simplified
0

Fragmentos

Escrito por Editor on terça-feira, janeiro 10, 2012 in

Prefácio

É possível que esta forma de “exposição” se afigure, a muita gente, singular; que pareça demasiado severa para ser edificante, demasiado edificante para ter rigor especulativo. Se ê demasiado edificante, não sei bem; demasiado severa, suponho que não; e se o fosse, seria, a meu ver, um defeito. O problema não está em saber se pode ser edificante para toda a gente, visto que nem toda a gente será capaz de a seguir; mas, neste caso, que por sua natureza seja edificante. A regra cristã quer, com efeito, que tudo, tudo, possa ser pretexto para edificar. Uma especulação que não o consiga, será, por isso mesmo, acristã. Uma exposição cristã deve evocar, sempre, as palavras do médico à cabeceira do enfermo; não sendo necessário ser cristão para as entender, nunca se deve esquecer, contudo, o lugar onde foram proferidas.

Esta intimidade do pensamento cristão com a vida (contrastando com a distância que a especulação mantém) e também esse aspecto ético do cristianismo, implicam precisamente a edificação, e uma separação radical, uma diferença de natureza, separam uma exposição desta espécie, não obstante o seu rigor, dessa forma de especulação que se quer “imparcial”, e cujo pretenso heroísmo sublime, bem longe de o ser, não é para o cristão mais do que uma espécie de desumana curiosidade.

Ousarmos ser nós próprios, ousarse ser um indivíduo, não um qualquer, mas este que somos, só face a Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua responsabilidade: eis o heroísmo cristão, e confesse-se a sua provável raridade; mas haverá heroísmo no iludirmo-nos pelo refúgio na pura humanidade, ou em brincar a ver quem mais se extasia perante a história da humanidade? Todo o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica.

A inquietação é o verdadeiro comportamento para com a vida, para com a nossa realidade pessoal e, conseqüentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por excelência; a elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma seriedade superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é, eu vo-lo afirmo, aquilo que edifica.

Em certo sentido, portanto, um estudante de teologia teria podido ser o autor deste livrinho, ainda que, em outro sentido, talvez nenhum professor o tivesse podido escrever.

Mas, tal como se apresenta, este tratado não nasceu da irreflexão, nem deixa de ter probabilidades de acerto psicológico. Se há um estilo mais solene, o certo é que a solenidade levada a tal grau deixa de ter sentido, e com o hábito acaba por se realizar à insignificância.

Quanto ao resto, urna última observação, sem dúvida supérflua, mas que não quero deixar de fazer: quero acentuar por uma vez qual a acepção que tem a palavra desespero em todas as páginas que se seguem; como o título indica, ele é a doença e não o remédio. É essa a sua dialética. Tal como na terminologia cristã, a morte exprime miséria espiritual, se bem que o remédio seja precisamente morrer, morrer para o mundo.

Exórdio

Esta enfermidade não é para morte (João 11, 4) e contudo Lázaro morreu; mas como os discípulos não compreendessem a continuação: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas eu vou acordá-lo do seu sono, Cristo disse-lhes sem ambigüidade: Lázaro está morto (11, 14). Lázaro, portanto, está morto, e contudo a sua doença não era mortal, mas o fato é que está morto, sem que tenha estado mortalmente doente.

Cristo pensava nesse momento, sem dúvida, no milagre que mostrasse aos contemporâneos, ou seja, àqueles que podem crer, a glória de Deus, no milagre que acordou Lázaro de entre os mortos; de modo que não só essa doença não era mortal, mas ele o predisse, para maior glória de Deus, a fim de que o filho de Deus por tal fosse glorificado.

Mas, ainda que Cristo não tivesse acordado Lázaro, nem por isso seria menos verdade que essa doença, a própria morte, não é mortal! Desde o instante em que Cristo se aproxima do túmulo e exclama: Lázaro, levanta-te e caminha! (11, 43) já estamos certos de que essa doença não é mortal. Mas até sem essas palavras, não mostra ele, ele que é  a Ressurreição e Vida (11, 25), só pelo aproximar-se do túmulo, que essa doença não é mortal? e simples fato da existência de Cristo, não é isso evidente? Que proveito haveria, para Lázaro, em ter ressuscitado para ter de acabar por morrer! Que proveito, sem a existência daquele que é a Ressurreição e a Vida para qualquer homem que n ‘Ele creia! Não, não é por causa da ressurreição de Lázaro que essa doença não é mortal, mas por Ele existir, por Ele. Visto que na linguagem humana a morte é o fim de tudo, e, como é costume dizer-se, enquanto há vida há esperança.

Mas, para o cristão, a morte de modo algum é o fim de tudo, e nem sequer um simples episódio perdido na realidade única que é a vida eterna; e ela implica para nós infinitamente mais esperança do que a vida comporta, mesmo transbordante de saúde e de força.

Assim, para o cristão, nem sequer a morte é a doença mortal, e muito menos todos os sofrimentos temporais: desgostos, doenças, miséria, aflição, adversidades, torturas do corpo ou da alma, mágoas e luto. E de tudo isso que coube em sorte aos homens, por muito pesado, por muito duro que lhes seja, pelo menos àqueles que sofrem, a tal ponto que os faça dizer que  a morte não é pior, de tudo isso, que se assemelha à doença, mesmo quando não o seja, nada é aos olhos do cristão doença mortal.

Tal é a maneira magnânima como o cristianismo ensina ao cristão a pensar sobre todas as coisas deste mundo a morte incluída. É quase como se lhe fosse necessário orgulhar-se de estar altivamentepara além daquilo que correntemente é considerado infelicidade, daquilo que vulgarmente se diz ser o pior dos males... Mas em compensação o cristianismo descobriu uma miséria cuja existência o homem, como homem, ignora; e essa miséria é a doença mortal.

O homem natural pode enumerar à vontade tudo o que é horrível e tudo esgotar, o cristão ri-se da soma. A diferença que há entre o homem natural e o cristão é semelhante à da criança e do adulto. O que faz tremer a criança nada é para o adulto. A criança ignora o que seja o horrível, o homem sabe e treme. O defeito da infância está, em primeiro lugar, em não conhecer o horrível, e em seguida, devido à sua ignorância, em tremer pelo que não é para fazer tremer. Assim o homem natural; ele ignora onde de fato jaz o horror, o que todavia não o livra de tremer. Mas é do que não é horrível que ele treme. Assim o pagão na sua relação com a divindade; não só ele ignora o verdadeiro Deus, mas adora, para mais, um ídolo como se fosse um deus.

O cristão é o único que conhece a doença mortal. Dá-lhe o cristianismo uma coragem ignorada pelo homem natural — coragem recebida com o receio dum maior grau de horrível. Certo é que a coragem a todos é dada; e que o receio dum maior perigo nos dá forças para afrontar um menor; e que o infinito temor dum único perigo nos torna como inexistentes todos os outros. Mas a lição horrível do cristão está em ter aprendido a conhecer a doença mortal.

Soren Kierkegaard, O Desespero Humano.

|

Copyright © 2012 A Teia das Vaidades All rights reserved. Theme by Laptop Geek. | Bloggerized by FalconHive.